Chamada de telemóvel
Telemóvel a vibrar…
Não pode fazer barulho para não ser um daqueles que utiliza o telemóvel para dizer que o tem.
Levanto o aparelho e atendo sem hesitar.
Do outro lado:
- Estou? Ainda bem que estás aí. Precisava ouvir-te. Queria tanto sentir que ainda me atendes e que não me esqueceste. Sabes que me lembro todos os dias daquele verão quente que passamos juntos.
(Começo a ficar intrigado)
- … Precisamos encontrar-nos. Tomar um café, conversar. Gostaria de voltar à fonte em Itália onde nos beijámos pela primeira vez. Que achas de terminarmos o percurso do México que deixámos a meio depois de teres caído no meio das ruínas? Ah, falando nisso, como ficaste do pé? Sei que a recuperação do pé partido é fácil e tu que precisas estar em condições para te manteres em pé nos patins.
(A minha cara era um enorme ponto de interrogação)
Ainda tentei: “Mas… q…”
(Não consegui continuar)
- … Ah, sabes, estou em pulgas para te dar o que consegui arranjar. Numa viagem que fiz, fui parar à concentração da tua equipa. Fiz um cartaz enorme e pedi a camisola ao teu ídolo. Vais adorar a camisola azul!!! Ainda muito me vais agradecer. Agora estou em Lisboa e de partida para o sul. Encontrámo-nos na tasquinha do costume em Cuba. Está um calor do pior mas acho que no final vai valer a pena encontrar-te no meio dos lençóis do quartinho que a Dona Clementina nos guarda todos os anos. Ah, como adoro aquele retiro. Acordar ao teu lado e ouvir os passarinhos…
(Se me queria ouvir, como é que ainda não parou de falar???)
(Mas estou a gostar)
De repente:
- Estou? Ainda estás aí?
Respondi:
- Sim,
Continuou:
- Desculpe! Com quem estou a falar?
Eu disse o meu nome e reparei que do outro lado da linha tudo havia corado…
Terminou:
- Peço imensa desculpa, foi engano.
Depois de “tuuuu, tuuuu, tuuuu”, pensei:
Nunca fui a Itália mas gostava.
México, só vi do avião quando tive a sorte de sobrevoar.
Partir o pé? Nunca me aconteceu.
O meu clube não veste de azul.
Tasquinha em Cuba? Só estive na terra dos charutos e em trânsito de tráfego internacional. D. Clementina faz-me lembra uma música da moda.
Que viagem em 5 minutos!
Por momentos, parece que vivi todas aquelas peripécias.
Nem tive tempo de dizer que tinha gostado que me ligasse e que podia ligar de vez em quando, faz bem ao ego.
Se estiveres aí, liga-me...
Um comentário:
"A arte consiste em fazer os outros sentir o que nos sentimos, em os libertar deles mesmos, propondo-lhes a nossa personalidade para especial libertação. O que sinto, na verdadeira substância com o que sinto, é absolutamente incomunicável; e quanto mais profundamente o sinto, tanto mais incomunicável é. Para que eu, pois, possa transmitir a outrem o que sinto, tenho que traduzir os meus sentimentos na linguagem dele, isto é, que dizer tais coisas como sendo as que sinto, que ele, lendo-as, sinta exactamente o que eu senti. E como este outrem é por hipótese de arte, não esta ou aquela pessoa, mas toda a gente, isto é, aquela pessoa que é comum a todas as pessoas, o que, afinal, tenho que fazer é converter os meus sentimentos num sentimento humano típico, ainda que pervertendo a verdadeira natureza daquilo que senti." Pessoa
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